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Plano-sequência: desafios técnicos em busca de um realismo

Antes do lançamento de "1917" muitos filmes já tinham se desafiado com o plano-sequência. Descubra as principais dificuldades encontradas por eles.

há 4 anos 2 meses

A vitória de 1917 (2020) nas principais categorias do Globo de Ouro e nos prêmios dos sindicatos de diretores (Directors Guild of America) e produtores (Producers Guild of America) reacendeu discussões sobre uma técnica apropriada por esta produção que já foi bastante empregada ao longo da história do cinema: o plano-sequência.

A técnica consiste na não-fragmentação de uma ação pela montagem, registrando todo o acontecimento em apenas um take, que se desloca temporalmente – e frequentemente, também, espacialmente.

Um dos principais entusiastas do plano-sequência foi André Bazin. Crítico e teórico do cinema, ele defendia um realismo cinematográfico que poderia ser alcançado por algumas técnicas, como a grande profundidade de campo (foco nítido em todas as camadas de um plano) e o plano-sequência (que seria uma escapatória ao que ele intitula uma “montagem proibida”).

Para Bazin, essas duas técnicas de virtudes realistas “dariam ao olhar a liberdade de perscrutar o real em sua pulsante e contraditória imanência”. Dessa forma, a montagem não fragmentaria o “real” e nem induziria o espectador a uma leitura unidirecional do mundo.

Para além da teoria, muitas produções se desafiaram nas realizações em plano-sequência. E até mesmo grandes diretores se deparavam com uma barreira comum: a tecnologia.

No período do cinema analógico o tempo limite de gravação de um take era o tamanho do filme negativo. Um negativo de 1000 pés (cerca de 300 metros) registrava apenas 11 minutos. Como seria possível, então, realizar um longa-metragem em plano-sequência com essa limitação?

Na década de 40, Alfred Hitchcock tinha a intenção de adaptar para o cinema uma peça de teatro que se passava das 19h30 às 21h15: “a peça durava o mesmo tempo que a ação, era contínua, desde que a cortina subia até que o pano descia, e fiquei pensando: como é que, tecnicamente, posso filmar da mesma maneira?”.

Rompendo com sua tradição e renegando as teorias de fragmentação do filme, Hitchcock apresentou em 1948 Festim Diabólico: um longa-metragem que simula o plano-sequência. Isso mesmo, apenas simula.

Para driblar a limitação dos 11 minutos do negativo, Hitchcock “escondeu” os cortes entre os rolos com uma técnica intitulada blocking. Quando o rolo estava prestes a acabar, o operador de câmera se aproximava de um personagem, dando um close-up em seu casaco e deixando a tela inteiramente preta. Após trocar o rolo do negativo, o próximo plano iniciava da mesma posição: na imagem preta do casaco do personagem. Dessa forma, a tela preta criava uma costura entre os planos, disfarçando o corte.

Confira neste vídeo todos os cortes escondidos do filme:

https://vimeo.com/76087987

Tudo tinha que ser milimetricamente planejado. O chão tinha diversas marcações numeradas e o operador de câmera tinha que alinhar sua posição nos números com os diálogos do roteiro. O cenário também era adaptado. Os móveis tinham rodinhas e as paredes eram deslocáveis, para que a câmera pudesse transitar livremente entre os cômodos do apartamento.

Ao todo foram dez dias de ensaios com a câmera, atores e iluminação, dezoito dias de gravação e nove dias de refilmagens.

Outros filmes mais contemporâneos também pretendiam simular um plano-sequência e utilizaram a técnica do corte invisível. É o caso de Birdman (2014), vencedor do Oscar de Melhor Filme em 2015, e o já citado 1917 (2020).

Com a chegada do cinema digital e o fim da barreira dos 11 minutos, alguns diretores levaram a proposta do plano-sequência ainda mais ao extremo. Alexander Sokurov realizou Arca Russa (2002) em um único plano de 1h30min.

A motivação do diretor era narrativa: “estou cansado de montar (editar), não quero experimentar com o tempo. Quero filmar em tempo real. Deve ser como é na realidade. Não se deve temer o fluir do tempo”.

Mesmo se livrando das limitações do tempo da película, a produção do filme teve outros desafios. Atrás do steadicam os assistentes carregavam discos rígidos para que o material fosse captado da câmera sem compressão. Com isso, os arquivos possuíam mais informações e tinham maior maleabilidade na pós-produção.

Este foi o primeiro longa-metragem digital a realizar uma captação sem compressão, e em nosso post O que é Profundidade de Bits? você pode aprender um pouco mais sobre como funciona a compressão de cor da imagem.

Além das limitações de movimento de todo esse equipamento, sem as pausas para a troca do rolo, a produção teve que coordenar simultaneamente mais de 2000 atores e figurantes, em 36 salões, para realizar a gravação. Tudo isso em um curto período de tempo, já que a direção de fotografia dependia da luz do sol e o tempo disponível para gravação em uma diária não passava de quatro horas.

Confira o making of de Arca Russa:

Apesar de todas as dificuldades, curtiu a proposta de gravação em plano-sequência e quer se aventurar nesse desafio técnico? Na falta de equipamento, nós listamos algumas dicas para evitar que sua captação fique tremida. Confira aqui: Como evitar gravação tremida pra quando não tiver gimbal.

Referências

Livros: “Hitchcock/Truffaut: entrevistas”, por François Truffaut “O que é o cinema?”, por André Bazin

Filmes: 1917 (2020), dirigido por Sam Mendes Festim Diabólico (1948), dirigido por Alfred Hitchcock Birdman (2014), dirigido por Alejandro González Iñárritu Arca Russa (2002), dirigido por Alexander Sokurov

Autor(a) do artigo

Rafael Alessandro
Rafael Alessandro

Professor, coordenador e produtor de conteúdo no AvMakers. Rafael Alessandro é formado em Comunicação, graduando em Cinema e Audiovisual e mestrando em Cinema e Artes do Vídeo pela Faculdade de Artes do Paraná.

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